Mau Amor

"I realized these were all the snapshots which our children would look at someday with wonder, thinking their parents had lived smooth well-ordered lives and got up in the morning to walk proudly on the sidewalks of life, never dreaming the raggedy madness and riot of our actual lives, our actual night, the hell of it, the senseless nightmare road"

Jack Kerouac, On the Road - The Original Scroll



Tuesday, January 19, 2010

Volta a 2009 em 10 posts: IV Os Trintões*





"Deixa-te de fantasias"


Estávamos ambos sentados no cimento liso de um pedaço de terra rodeado por mar, mas sem areia. Uma praia? Não. Não há areia. Uma zona balnear. Por detrás de uns óculos escuros Armani, o meu mano mais velho diz: "Chegamos a uma idade em que deixamos de ter fantasias". Lembro-me então de que, há mais ou menos vinte anos atrás, subíamos uma rua de mãos dadas quando ele disse: "Tens que ser menos emotiva, Ana Isabel. Dominar os sentimentos em vez de te deixar dominar por eles". Lembrei-me disso e apercebi-me de que, se a vida nos forja, só o consegue fazer até certo ponto. A alma, a nossa essência responda ela por que nome for, nasce inteira e não é flexível. A vida tentará sempre dobrá-la, mas o seu grau de sucesso dependerá das características inatas do metal.

O tempo é o nosso teste de resistência. Se a idade não define quem somos, obriga-nos a definir-nos. E os trinta anos são a altura em que a maior parte das pessoas decide que chegou o momento de parar com as brincadeiras.

Aos trinta anos, uma pessoa apercebe-se da finitude do seu horizonte. O corpo começa a revelar que é falível e uma vítima da força de gravidade. As regras da sociedade ditam que aquelas mesmas coisas que foram sempre fonte de prazer, ainda que continuem a ser apetecíveis, são agora condenáveis.


Uma mulher de 29 anos receia que, se não assentar, nunca terá a oportunidade de realizar a sua condição mais essencial: ser mãe. Mas ambos os sexos percebem que aquele sentimento de solidão continuará a agravar-se e que, sendo assim, mais vale agarrarem-se bem à pessoa que têm ao lado. A urgência de se agarrarem a algo. Uma mulher, um filho, uma prestação da casa. Torna-se importante viver para algo que não seja somente a satisfação do próprio desejo.

Que sociedade teríamos se, aos trinta anos, as pessoas não sentissem esta orfandade?

O tipo de gravata que se mata a trabalhar das nove às seis da tarde para pagar a creche do filho e o carro de terceira mão pode encontrar pequenas felicidades no seu dia a dia, mas não foi isso que ele imaginou quando em pequeno lhe perguntavam o que queria ser quando fosse grande. Deitado na sua cama adolescente a sonhar com o futuro ouvindo punk rock e sentindo-se capaz de tudo, "tudo" não era o cubículo 21 de um call center. O que é que lhe aconteceu? Como o meu irmão disse: "chegamos a uma idade em que nos deixamos de fantasias". O filho desse tipo engravatado não pode comer sonhos ao pequeno-almoço e o supermercado não aceita fantasias como forma de pagamento. Percebo, mano.

Nós precisamos que esse tipo seja tal e qual como ele é e que hajam muitos mais como ele. São essas as pessoas que descontam para a Segurança Social, os que vêem as comédias norte-americanas estúpidas que são as fontes de lucro das produtoras de Hollywood. Sem eles ninguém conheceria a Sandra Bullock e não existiria a revista Caras.  Pagam impostos e no porta-chaves têm um cartão do Clube Minipreço. Estas pessoas são o óleo que permite que a "máquina" continue a funcionar. O sustentáculo do mundo tal como o conhecemos.

Mas do que teremos de abdicar, enquanto sociedade, para termos estabilidade? Quem somos quando nos deixamos de fantasias?

O meu irmão é oito anos mais velho do que eu. Quando vemos fotografias de família e ele aparece em versão reguila, logo salta para o lado do écran de televisão para que possamos fazer a comparação: "O que é que aquele gajo que está ali tem que eu não tenha?", pergunta com o sorriso seguro de quem acha que o tempo não o marcou. Mas isso não é verdade.

Houve um dia em que ele apostou tudo numa pessoa que acabou por o desiludir. A partir daí arrumou-se em várias caixinhas, definiu-se como o aventureiro, o forte, o solteirão. E fechou outras definitivamente. Ter uma família não era para ele. Ele estaria bem, mas sozinho. Deixou de ter fantasias.

Vendo-o agora enroscado no sofá com a Margarida a irradiar felicidade por todos os poros encontro uma certa serenidade. Afinal o que nós perdemos é a coragem para dizer que ainda sonhamos.





*a pedido de muitas famílias, apesar de já estarmos em 2010, vou finalizar a sequência Volta a 2009 em 10 posts. Perdoem o anacronismo s.f.f.

Tuesday, January 12, 2010

Dreaming of trees

Quando eu era pequena o meu pai às vezes levava-me consigo para os pastos quando ia tratar dos animais. Tínhamos vários terrenos espalhados pela ilha que eram do meu avô e de que ele cuidava religiosamente. Não consigo lembrar-me de qual seria a minha idade então apenas de que ainda não estava na escola e, portanto, teria menos de seis anos.

Tentava apanhar borboletas e comia erva azeda com a flor amarela na ponta do fio verde que trincava entre dentes observando atentamente cada gesto dele, tentando perceber comos e porquês. Estava sol e, se o tentava ajudar, se me queria envolver ele dizia sempre que o lugar das meninas era em casa. Lembro-me de lhe perguntar mil vezes se o podia ajudar e de ele, na sua sensatez, só me responder umas duzentas vezes. "Não".

Houve sempre um grande silêncio à volta do meu pai. Não o silêncio desconfortável entre duas pessoas que não se conhecem o suficiente para manter uma conversa ainda que se sintam obrigadas a isso. O meu pai tinha o silêncio da paz. As suas mãos grandes cheiravam a  terra quente, mas eram sobretudo os olhos, de cor indefinida entre o azul e o cinza, que me diziam que ele estaria lá sempre que eu precisasse, mesmo quando mais ninguém estivesse. Sobretudo quando mais ninguém estivesse.


Àquele bocado de terra chamávamos Mata por causa das árvores altas e abundantes que lá havia depois do pasto. As vacas ficavam nesse primeiro rectângulo verde delimitado por um muro feito de pedras empilhadas onde a certa altura uma quebra servia de porta para a zona das àrvores, onde o sol penetrava mal a rede de copas de árvores unidas lá no alto. Era assustador entrar lá por causa dessa escuridão. Tinha-se a sensação de de repente se entrar num mundo diferente. O chão deixava de ser luzerna por onde se podia correr facilmente atrás de borboletas -"Ana Isabel, sai de cima da erva!!"- para ser as folhas secas que caiem das árvores e grandes pedras negras, ora com musgo ora ásperas, esponjas a absorver a humidade. O chão não era certo e, por isso. os passos muito menos.

Estava a andar por cima das folhas tomando atenção ao sítio onde colocava os pés. Folhas de eucalipto. Eram castanhas e tinham a forma de uma meia lua alongada. Uma foice. Faziam barulho quando as pisava. Lá no alto, muito acima de mim, as copas das árvores eram como mulheres enfurecidas que se abanavam. Faziam barulho. Eu estava a procurar uma cascata. Ouvia água a correr. O som da água em movimento. Imaginava a minha cascata para lá dos troncos caídos, dos galhos e das silvas que pareciam alimentar-se daquela escuridão. Uma mistura de medo e sede fazia com que continuasse a avançar até chegar bem longe da entrada da Mata. O vazio deteve-me.

À minha frente uma queda abrupta de terreno. Terra. Só terra. Olhei para cima e vi como os ramos mais altos dos eucaliptos eram abanados pelo vento. Faziam barulho. Um barulho que parecia água. Água a cair.