Nunca. Nunca é das minhas palavras favoritas por encerrar em si uma espécie de feitiço. Quando se diz nunca está-se a desafiar a existência. Alguém toma como certo ser dono do seu destino, a existência sorri, esfrega as mãos de contente, leva o seu tempo e depois mostra a essa pessoa que ela é apenas um barco que navega num mar imenso e fora do seu controlo.
Dou comigo muitas vezes a fazer coisas a que tinha negado qualquer possibilidade de futuro com um nunca. Rio de mim nessas alturas. E rio porque ser surpreendente é a minha característica favorita da vida. Rio porque sou imensa, mas pequena ao mesmo tempo. Quero certas coisas, mas sei que por as querer isso não significa que sejam o melhor para mim. Sigo o meu caminho, sigo o meu instinto e, mais do que outra coisa qualquer, sigo o meu desejo. Seja até um quarto de hotel ou para um outro país, a sensação que dá cá dentro é a de correr. Fugir deixando tudo para trás. Correr atrás do que verdadeiramente interessa. Metaforicamente, é chegar a uma secretária cheia de papéis, relatórios e actas e atirar com tudo para o ar. O desejo é a suprema liberdade.
Às vezes perco-me em todo esse querer. Chamo febres a essas fases porque, apesar de serem intensas, já aprendi que passam. Acordar com uma coisa na cabeça, comer com ela na cabeça, vê-la na nossa cabeça, o dia a passar sem que o sintamos, varrer o chão com ela na cabeça e chegar à cama cansada, mas ainda a querer adormecer com ela.
As febres passam, mas há desejos que ficam. E parece-me que os que ficam são a melhor definição possível de quem somos. Não a cor favorita, o nome, a idade ou sequer algum gosto porque esses são, mais do que tudo, a nossa reacção a uma realidade que nos é apresentada: ou nos é agradável ou não é. O que queremos, por outro lado, não tem nada a ver com o que nos rodeia. Ser filho de mineiros e ter o desejo profundo de ser mergulhador, viver no Sara e procurar na imaginação o toque da neve. Nós somos os nossos desejos.
Nunca. "Nunca vais conseguir". Há sempre alguém por perto que tem gosto em dizê-lo. É nessas alturas que eu penso em dois amigos meus. O primeiro, diz-me constantemente que tenho de reduzir o desejo sem se aperceber que, se eu o fizesse, estaria a cortar uma parte de mim na mesma proporção. O outro, mais sábio, diz num inglês meio manhoso "If you have enough will, if you are stubborn and if you have enough imagination". Gosto deste segundo amigo à brava. Chama-se Ryszard Kapucinski e ouvi-o dizer isto no primeiro dia em que consegui ouvir a sua voz. Dois anos depois dele ter morrido.
Oiçam-no também a partir dos 8:38 m
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1 comment:
O "nunca" tem piada! Faz-me pensar logo de seguida no "será que...?"
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