Mau Amor

"I realized these were all the snapshots which our children would look at someday with wonder, thinking their parents had lived smooth well-ordered lives and got up in the morning to walk proudly on the sidewalks of life, never dreaming the raggedy madness and riot of our actual lives, our actual night, the hell of it, the senseless nightmare road"

Jack Kerouac, On the Road - The Original Scroll



Tuesday, January 12, 2010

Dreaming of trees

Quando eu era pequena o meu pai às vezes levava-me consigo para os pastos quando ia tratar dos animais. Tínhamos vários terrenos espalhados pela ilha que eram do meu avô e de que ele cuidava religiosamente. Não consigo lembrar-me de qual seria a minha idade então apenas de que ainda não estava na escola e, portanto, teria menos de seis anos.

Tentava apanhar borboletas e comia erva azeda com a flor amarela na ponta do fio verde que trincava entre dentes observando atentamente cada gesto dele, tentando perceber comos e porquês. Estava sol e, se o tentava ajudar, se me queria envolver ele dizia sempre que o lugar das meninas era em casa. Lembro-me de lhe perguntar mil vezes se o podia ajudar e de ele, na sua sensatez, só me responder umas duzentas vezes. "Não".

Houve sempre um grande silêncio à volta do meu pai. Não o silêncio desconfortável entre duas pessoas que não se conhecem o suficiente para manter uma conversa ainda que se sintam obrigadas a isso. O meu pai tinha o silêncio da paz. As suas mãos grandes cheiravam a  terra quente, mas eram sobretudo os olhos, de cor indefinida entre o azul e o cinza, que me diziam que ele estaria lá sempre que eu precisasse, mesmo quando mais ninguém estivesse. Sobretudo quando mais ninguém estivesse.


Àquele bocado de terra chamávamos Mata por causa das árvores altas e abundantes que lá havia depois do pasto. As vacas ficavam nesse primeiro rectângulo verde delimitado por um muro feito de pedras empilhadas onde a certa altura uma quebra servia de porta para a zona das àrvores, onde o sol penetrava mal a rede de copas de árvores unidas lá no alto. Era assustador entrar lá por causa dessa escuridão. Tinha-se a sensação de de repente se entrar num mundo diferente. O chão deixava de ser luzerna por onde se podia correr facilmente atrás de borboletas -"Ana Isabel, sai de cima da erva!!"- para ser as folhas secas que caiem das árvores e grandes pedras negras, ora com musgo ora ásperas, esponjas a absorver a humidade. O chão não era certo e, por isso. os passos muito menos.

Estava a andar por cima das folhas tomando atenção ao sítio onde colocava os pés. Folhas de eucalipto. Eram castanhas e tinham a forma de uma meia lua alongada. Uma foice. Faziam barulho quando as pisava. Lá no alto, muito acima de mim, as copas das árvores eram como mulheres enfurecidas que se abanavam. Faziam barulho. Eu estava a procurar uma cascata. Ouvia água a correr. O som da água em movimento. Imaginava a minha cascata para lá dos troncos caídos, dos galhos e das silvas que pareciam alimentar-se daquela escuridão. Uma mistura de medo e sede fazia com que continuasse a avançar até chegar bem longe da entrada da Mata. O vazio deteve-me.

À minha frente uma queda abrupta de terreno. Terra. Só terra. Olhei para cima e vi como os ramos mais altos dos eucaliptos eram abanados pelo vento. Faziam barulho. Um barulho que parecia água. Água a cair.

No comments: