Mau Amor

"I realized these were all the snapshots which our children would look at someday with wonder, thinking their parents had lived smooth well-ordered lives and got up in the morning to walk proudly on the sidewalks of life, never dreaming the raggedy madness and riot of our actual lives, our actual night, the hell of it, the senseless nightmare road"

Jack Kerouac, On the Road - The Original Scroll



Thursday, August 20, 2009

Amor & Transportes Públicos

Ela gostava de andar de metro e de autocarro. É estranho, mas gostava. Um dia, apanhou um TGV de Bruxelas para Amesterdão e descobriu que gostava ainda mais de andar de comboio. Havia qualquer coisa de fascinante na paisagem a passar depressa enquanto ela estava comodamente sentada junto à janela. Sempre gostou de observar os outros, de os estudar. E, por vezes, chegava a casa e escrevia a história que imaginava ser a da vendedora de peixe ou a do velho bêbado que dizia palavras sem nexo, imperceptíveis, sentado nas escadas da igreja de Benfica. Aquele que apanhava sempre o 58 para sair em Sete Rios. E cheirava a podre.

Um dia, conheceu um rapaz e disse-lhe nunca. Mais tarde percebeu que dizer nunca é desafiar o destino a trocar-nos as voltas. Assim foi. Três meses depois de lhe dizer nunca, reencontrou-o e ele disse-lhe que queria estar com ela, mais ou menos na mesma altura em que ela sentiu que também queria estar com ele. Tinha uns olhos meigos e frágeis, daqueles que funcionam like a charm para tudo o que é mulher de coração de manteiga. Entre os olhos meigos dele e o coração de manteiga dela a coisa parecia funcionar bem. Mais do que olhos meigos, ele tinha um cabelo cor de mel, e uma voz serena que à noite usava para lhe falar de golfe quando, juntos na cama, ela pedia que lhe contasse uma história.

A história, invariavelmente, era sobre golfe. Ou melhor, mais do que sobre golfe, era sobre a paz que ele dizia sentir quando percorria os "verdinhos", quando cheirava o ar puro do green. Histórias de bolas perdidas e achadas e das pessoas que as procuravam. Ela não lhes prestava muita atenção. Gostava mesmo era de ouvir a voz dele antes de adormecer.

Da primeira vez que andaram de autocarro, ele ficou um pouco enjoado. Não gostava nada de andar de transportes públicos. Passava mal, sobretudo se ela estava por perto, coisa que ainda o inquietava. Tinha de ir sentado. De frente.

Durante algum tempo, a preocupação pelo bem estar dele ocupou-a por completo. Até que chegou o dia em que ele já reagia melhor aos solavancos do autocarro e ao mau cheiro do metro. Foi aí que ela lhe disse que gostava de andar de transportes públicos, que gostava de Lisboa, da confusão das cidades maiores do que a sua, que gostava de andar depressa e que, um dia, iria a ritmo rápido para o mais longe que conseguisse.

Ela queria banhar-se no Ganges, mesmo sabendo agora que era um dos rios mais poluídos do mundo, andar de carrocinha puxada a cavalo pela neve em Central Park, e beber uma pint num pub na Irlanda. Também queria pintar o cabelo de verde e comprar um peixinho dourado, mas isso não lhe pareceu de grande importância na altura de falar do que precisava para ser feliz.

Ele ouviu, ficou sem saber o que dizer e continuou a contar histórias de vidas simples. Uma pescaria no Pico, um banho de mar na Praia da Vitória, ter um carrinho seu e não ter de andar nunca mais de transportes públicos!! Era isto que ele queria.

Arranjaram uma bela e espaçosa casa onde os olhos meigos dele e o coração de manteiga dela foram felizes, mesmo nos dias em que diziam que não eram. Ela comprou um carro e ele deixou de andar de metro e de autocarro. Dormiam colados, tomavam banho juntos e às vezes bebiam umas cervejas quando se sentavam no grande sofá de cabedal para ver futebol. Toda a acção tinha banda sonora, todo o gesto uma combinação perfeita de carinho e sinceridade. Embalados nesta harmonia, ele esqueceu-se do golfe e ela que queria ir rapidamente para o mais longe que pudesse. Porque já não queria. Estava ali mesmo bem e achava que iam ter os filhos mais lindos do mundo: com olhos meigos, mas verdes, e um coração de manteiga com menos anseios, mais sereno.

E se esta história fosse da Disney ou da Pixar teria acabado aqui. Mas como o rapaz dos olhos meigos e a rapariga de coração de manteiga existiram mesmo não acabou.

Hoje ela percebe ainda melhor o quão especial era aquela casinha porque cá fora, a sinceridade e o carinho são coisas raras. A cada esquina promete-se isso mesmo, mas depois recebe-se o contrário. O mundo fora da casinha é mais feio e assustador. Às vezes, apetece-lhe voltar, mas já foi avisada, não sabe bem por quem:

Nunca voltes a um sítio onde já foste feliz. Por mais que o coração to peça, não oiças o que ele diz.

KiSS

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